A Infância como uma construção sócio-histórica


Patrícia Corsino
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo,
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé
Comprida história que não acaba mais
(....)
Eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé .

Carlos Drummond de Andrade

Numa perspectiva histórica sobre a infância na Europa, os estudos de Philippe Ariès (1986) no seu livro História Social da Criança e da Família,  revelaram que a idéia de infância, no sentido de diferenciação do adulto, é uma construção da modernidade, começando a surgir nos finais do século XVII, nas camadas superiores da sociedade, e se sedimentando no séc. XVIII.
De acordo com este autor, na Idade Média, assim que a criança tornava-se mais autônoma em relação aos cuidados da mãe ou da ama, logo se inseria na sociedade dos adultos, participando dos seus trabalhos e jogos. Observando as pinturas da época, vemos crianças e adultos dividindo o mesmo espaço, as mesmas atividades e o mesmo vestuário, numa grande sociabilidade. A única diferença está no tamanho das figuras representadas. As crianças adquiririam seus conhecimentos junto aos adultos sendo entregues às famílias, muitas vezes desconhecidas, para serem educadas, prestarem serviços domésticos ou aprenderem algum ofício. A escola da idade média não se dirigia especificamente à criança, segundo Ariès, foi a partir de uma série de mudanças na sociedade: ascensão da burguesia, difusão do impresso e crescente interesse pela alfabetização e moralização que a separação ocorre. A criança deixa de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles, sendo separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (p.11).  
Para Ariès, esse processo só foi possível com a cumplicidade da família, que passou a experimentar uma afeição pela criança, trazendo para si a responsabilidade pela sua proteção e formação, e tornando-se nuclear. A sociabilidade extensiva do Antigo Regime foi sendo substituída por uma socialização mais restrita à família e à escola. Como o próprio autor coloca, não se pode dizer que as crianças eram negligenciadas ou tratadas com desprezo; especialmente os pequenos eram paparicados, como “animaizinhos de estimação”, mas não existia um sentimento de infância. Foi a importância dada à educação que trouxe as crianças para o núcleo familiar e com ela, dois ingredientes contraditórios passaram a fazer parte da sua formação: a ternura e a severidade. Sentimentos traduzidos em forma de “paparicação” dos adultos pela criança, por considerá-la ingênua, inocente e graciosa, e em “moralização”, por considerá-la como ser incompleto e imperfeito, que precisa ser educado[2]. Sentimentos que, até os dias atuais, trazem a dualidade anunciada por Pinto (1997, p.33).
Neil Postman (1999) no seu livro O desaparecimento da infância, tomando como base o trabalho de Ariès, afirma que as razões pelas quais o conceito de infância não existiu no mundo medieval são a falta de alfabetização, a falta do conceito de educação e a falta do conceito de vergonha. Na Idade Média, nem os velhos, nem os jovens sabiam ler e seus interesses eram o aqui e agora, o imediato e local (p.50).
Segundo este autor, com o colapso do Império Romano e o sepultamento da cultura clássica, a Europa fica imersa na Idade das Trevas e depois na Idade Média, o uso do alfabeto romano ficou restrito, as pessoas deixaram de ler e escrever e a alfabetização, antes socializada, passa a uma alfabetização corporativa, ou seja, restrita a poucos privilegiados (Postman, 1999, p.24). O autor, indagando sobre as causas do declínio da leitura e da escrita, levanta algumas hipóteses: a primeira, é que houve uma multiplicação nos estilos de grafar as letras do alfabeto e as formas se tornaram rebuscadas e dissimuladas (o calígrafo favorecendo a alfabetização corporativa); a segunda, é que escassearam as fontes de fornecimento de pergaminho e papiro, ou seja, houve uma escassez de uma superfície adequada à escrita, desfavorecendo a alfabetização socializada; a terceira, diz respeito à Igreja Católica e a vantagem de manter uma alfabetização corporativa (restrita ao clero) como forma de controle das idéias, detenção de informações e  manutenção do seu poder. Com isso, todas as interações sociais importantes se realizavam oralmente, havendo uma volta às condições naturais de comunicação humana. Sendo assim, neste mundo oral não havia necessidade de infância porque todos compartilhavam o mesmo ambiente informacional e viviam os mesmos mundos social e intelectual. Depois dos sete anos, com o domínio da oralidade, a criança, por saber se expressar e compreender o que os adultos falavam, chegava à idade da razão,  se inserindo ao mundo adulto. Como não havia a idéia de uma educação primária letrada, para se ensinar a ler e a escrever, nem concepções de desenvolvimento infantil, as escolas que existiam não tinham gradação nos currículos nem separação etária, não havendo, portanto, a idéia de educação como preparação para o mundo adulto.
Quanto à ausência do sentimento de vergonha, na Idade Média, Postman se refere à participação indiscriminada das crianças em todos os mistérios, violências e tragédias da vida. Cita os quadros de Brueghel, que retratam crianças participando de festas com homens e mulheres embriagados, sendo apalpados com luxúria desenfreada. Tudo era permitido na frente das crianças, falar com vocabulário considerado vulgar, não controlar impulsos sexuais, brincar com os seus órgãos genitais, urinar e defecar, comer no mesmo prato e com as mãos, cuspir no chão etc. Os hábitos de higiene e de “bom“ comportamento não eram ensinados às crianças porque não faziam parte dos costumes da época, assim como também não havia a noção de privacidade que temos hoje.
É a partir do impresso e da escolarização que a vida adulta passa a ser conquistada, torna-se uma realização simbólica e não biológica. Depois da prensa tipográfica, os jovens teriam que se tornar adultos e, para isso, teriam que aprender a ler, entrar no mundo da tipografia. E para realizar isso precisariam da educação. Portanto, a civilização européia reinventou as escolas. E, ao faze-lo transformou a infância numa necessidade (Postman, 1999, p. 50).

Segundo Postman, a infância surge como uma necessidade porque surge também uma nova definição de adulto, um novo mundo simbólico a ser conquistado. A imprensa possibilitou não só a difusão alargada dos antigos manuscritos, como o surgimento de novos estilos de textos com base na autoria, na expressão pessoal e na informação como o texto jornalístico, o ensaio, o romance, os manuais de instrução entre outros, favorecendo a idéia de individualidade que já vinha sendo construída na vida social da burguesia ascendente. O texto impresso trouxe também uma nova maneira de organizar e ordenar a informação tanto pela forma (diagramação nas páginas, ortografia, sinais de pontuação) quanto pela estrutura da linguagem (mais lógica e mais objetiva que a linguagem oral), o que confere autoridade ao escrito. Com a leitura, um mundo novo de conhecimentos se abre ao leitor, a informação migra do ouvido para o olho, do coletivo para o individual, a comunicação entre as pessoas se amplia, uma vez que os leitores se libertam do imediato e local, se separando do mundo da oralidade, centrado no costume e na memória. Com o impresso, o mundo europeu torna-se cada vez mais grafocêntrico, pois além dos registros se estenderem a todas as esferas das relações humanas, podem  ser multiplicados e publicados. Com isso, ainda para Postman, cria-se uma divisão entre os que sabem ler e os que não sabem, que aumenta a distância entre as classes sociais e que também separa o mundo infantil do mundo adulto.
A partir do século XVI e XVII a alfabetização passa a ser um valor na sociedade européia; as escolas ganham novos contornos tornando-se lugar de Educação Infantil, de preparação para se conquistar a vida adulta, com divisão por faixa-etária e gradação de conteúdos. Com a mudança de hábitos e costumes, a moral, o pudor e a decência infantis ganham destaque e, assim, a proteção e a formação passam a ser reconhecidas como necessárias à infância, sendo defendidas por renovadores pedagógicos, moralistas e médicos, que sugerem medidas práticas para preservar a criança do despudor e da imoralidade. Tais medidas vão desde o controle da leitura até regras de comportamento. Os manuais de civilidade se proliferam e, com suas instruções de comportamento e decência, ressaltam a importância de se impor respeito através até mesmo da linguagem. Ariès mostra, ainda, que o sentimento de infância é refletido no âmbito artístico cultural, em que a criança passa a ser valorizada na pintura por artistas influentes como Rubens, Le Nain e Van Dyck e na literatura por escritores como Mme de Sévigné, Montagne e Coulanges.
Desta forma, para Ariès, a separação entre adultos e crianças, especialmente para os filhos das classes favorecidas, teve um forte cunho pedagógico, moralizante e de controle ao acesso de informação.  Nas classes populares, porém, o trabalho infantil continuou a ser uma realidade que não permitia tão nitidamente esta separação. Apesar das diferenças entre as crianças das diferentes classes sociais, verifica-se que foi havendo uma preocupação cada vez maior com a responsabilização da sociedade pela proteção das crianças, especialmente para aquelas consideradas abandonadas ou vagabundas que passaram a ser cuidadas por instituições de acolhimento. A  Revolução Francesa já afirmava a igualdade de direitos e deveres individuais, desde o nascimento e trazia a necessidade de instrução para todos, instituindo na França a escola leiga obrigatória para ambos os sexos, mudando a perspectiva dos pais em relação aos filhos, que passam de proprietários e credores a devedores (Pinto, 1997).
Esta nova sensibilidade que floresce na modernidade mereceu a atenção de dois pensadores bastante influentes na sua época: John Locke (1632-1704) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Vestígios das suas teorias podem ser observados ainda hoje nas concepções, posturas e atitudes dos adultos em relação às crianças.
Locke, considerado o fundador da corrente filosófica empirista, compreende que é a experiência que dá origem ao conhecimento e é pela aprendizagem, vista dentro da lógica da imitação, da repetição, da recompensa e do castigo, que o ser humano deixa de ser a folha de papel em branco que é ao nascer. A sua teoria da tabula rasa – o recém-nascido seria uma espécie de superfície de cera onde os adultos poderiam imprimir as suas marcas, “escrevendo” aquilo que julgassem necessário – deu consistência ao ideário protestante de moralização, de alfabetização e de chamada da razão às crianças. A ênfase aos fatores exógenos para o desenvolvimento do sujeito, à influência da sociedade e do meio em geral para a formação do homem, reforçou a importância da educação, da atuação de pais e mestres junto às crianças desde pequenas. Uma criança ignorante, indisciplinada e despida de vergonha, segundo sua teoria, significava um fracasso do adulto e não da criança.
Rousseau, defensor da liberdade enquanto direito e dever de todos os homens, tem como um dos pilares de sua filosofia a idéia de que o homem nasce bom, mas o convívio em sociedade o faz decair. Para evitar que uma criança, que é naturalmente boa, se torne má, o autor, no seu ensaio pedagógico e romance O Emílio (1757), traça dois grandes objetivos para a educação: desenvolver as potencialidades naturais das crianças e afastá-las dos males sociais. Neste texto, Rousseau propõe uma educação progressiva, de tal forma que cada etapa seja adaptada às necessidades individuais de desenvolvimento. Assim, a primeira etapa seria aperfeiçoar os órgãos dos sentidos, já que inicialmente as necessidades das crianças são físicas e o conhecimento do mundo feito através do contato direto com as coisas e com a natureza. Para ele, a criança, libertada das opiniões humanas, se identificaria com as necessidades de sua vida imediata, tornando-se auto-suficiente e sem preocupações com o futuro.  Caberia, então, aos adultos reduzir a orientação sobre a criança, ajudando-a a resolver os seus próprios problemas ao invés de ensiná-la as respostas certas (Chauí, 1999, p.16). Rousseau entendeu que a criança é importante em si mesma e não como um meio para chegar a um fim. Seus escritos despertaram uma curiosidade sobre a natureza da infância que persiste até hoje:
Poderíamos dizer com justiça que Friedrich Froebel, Johann Pestalozzi, Maria Montessori, Jean Piaget, Arnold Gesell e A. S. Neill são todos herdeiros intelectuais de Rousseau (...). Certamente o trabalho deles partiu da hipótese de que a psicologia infantil é essencialmente diferente da dos adultos e deve ser valorizada por si mesma (Postman, 1999, p.72).

Tanto o empirismo de Locke, trazendo a preocupação de transformar a criança num adulto civilizado por meio da educação, da alfabetização, da razão, do autocontrole e da moralização; quanto o romantismo de Rousseau com a idéia de salvaguardar as virtudes infantis como pureza, espontaneidade e alegria dos riscos da sociedade, consideram a infância como um período distinto da vida adulta. A partir do Iluminismo a criança foi se tornando cada vez mais diferenciada do adulto, não podendo mais compartilhar de sua vida social.

À sombra dos adultos: a construção histórica da infância no Brasil

As pesquisas de Ariès e as reflexões advindas a partir delas, embora bastante importantes e inovadoras ao trazerem o sentimento de infância enquanto uma construção histórica, sofreram críticas na época de sua publicação pela própria interpretação do autor em relação à não existência do sentimento de infância no Antigo Regime e por refletirem uma realidade européia que, embora tenha tido uma forte influência no mundo ocidental, não pode ser  generalizada ou transportada mecanicamente para outras realidades sociais como, por exemplo, a brasileira. Kramer (1996) alerta para este fato, trazendo as marcas da nossa diversidade no processo de socialização de adultos e crianças: 
Dada a diversidade de aspectos sociais, culturais e políticos que interferiram na nossa formação: a presença da população indígena e seus costumes, o longo período de escravidão brasileira, e ainda as migrações, o colonialismo e o imperialismo, inicialmente europeu e mais tarde americano, forjaram condições que, sem dúvida, deixaram marcas diferenciadas no processo de socialização de adultos e crianças (p.20).

Desde os primórdios da colonização, as diferenças contrastantes da nossa sociedade, pela distribuição de renda e de poder, fizeram emergir infâncias distintas para classes sociais também distintas. O significado social dado à infância, não foi homogêneo pelas próprias condições de vida das nossas crianças. Portanto, usando as palavras de Del Priori (2000, p.11), a historiografia internacional pode servir de inspiração, mas não de bússola para se pensar a construção deste sentimento entre nós. E a autora ainda afirma que a história da criança brasileira não foi diferente da dos adultos, tendo sido feita à sua sombra. Sombra de uma sociedade que viveu quase quatro séculos de escravidão, tendo a divisão entre senhores e escravos como determinante da sua estrutura social. Na história do Brasil, a escolarização e a emergência da vida privada burguesa e urbana não foram os  pilares que sustentaram a construção do nosso sentimento de infância.
A escolarização no Brasil teve início no período colonial com os jesuítas que, com o objetivo de civilizar e catequizar os curumins e os órfãos da terra (como eram chamadas as crianças oriundas de ligações entre brancos ou negros e mulheres índias), criaram as “Casas de Muchachos” que, sob o regime de internato, afastando as crianças do seu convívio sócio-familiar, acabava sendo para poucos. Ainda neste período, foram criadas as Santas Casas da Misericórdia, que tinham como objetivo inicial guardar a vida das pessoas necessitadas e, posteriormente, passaram a acolher também as crianças abandonadas, os “expostos”, normalmente frutos de ligações clandestinas de mulheres brancas da elite ou de crianças pobres, mestiças, negras e índias. O Recolhimento dos Meninos Órfãos da Santa Casa da Misericórdia, com a Roda[3] ocultando a identidade de quem depositava a criança, institucionalizou o abandono infantil e encaminhou ao trabalho precocemente os poucos órfãos que sobreviviam aos primeiros anos de vida[4].
 O ensino público só surgiu a partir da segunda metade do século XVIII, durante o governo do Marquês de Pombal, sendo também de acesso restrito. Na época da Independência, o Brasil já acumulava dificuldades nos centros urbanos. O Rio de Janeiro, sede do governo, tornou-se uma cidade inchada e com grandes problemas sócio-econômicos: habitantes pobres da periferia buscavam pelas ruas meios de sobreviver, esmolando, comercializando e exercendo pequenos serviços. As crianças das classes mais abastadas eram educadas por preceptores particulares, não tendo freqüentado escolas até o início do século XX e os filhos dos pobres, desde muito cedo, eram considerados força produtiva, não tendo a educação como prioridade. Desde os pequenos grumetes recrutados nos portos de Portugal para servirem nos navios, aos filhos dos escravos, mestiços e imigrantes, às crianças pobres brasileiras coube o trabalho e não a escola (Del Priori, 2000, p.12). Este fato não pertence ao passado: é ainda visível nos dias de hoje, seja nos centros urbanos, vendendo em sinais de trânsito, pedindo esmolas ou exercendo serviços diversos, seja nas áreas rurais, nas lavouras domésticas ou na monocultura, crianças de várias idades contribuem efetivamente para a economia doméstica, deixando a escolarização em segundo plano. São os nossos trabalhadores invisíveis, exercendo um papel produtivo com a infância atravessada e sonhos adiados.
No Brasil, é muito recente a democratização da escolarização. Pelos dados do MEC (2002), temos hoje 97% das crianças de 7 a 14 anos matriculadas na escola e a taxa de freqüência líquida cresceu de 78,1% em 1992 para 96,3% em 2000. Porém, isto não significa a eliminação do trabalho infantil. O relatório Um Futuro sem Trabalho Infantil, divulgado em maio de 2002, pela OIT - Organização Internacional do Trabalho -, revela que no Brasil 7,622 milhões de crianças, em média, estão envolvidas com algum tipo de atividade, seja ela remunerada ou não. Com base nos dados de 1999, o estudo constatou que 6,6 milhões de crianças e adolescentes trabalham no país, sendo que mais da metade deste exército mirim  tem entre 5 e 11 anos de idade e que seis, em cada dez destes, não recebem nada pelo seu trabalho. Nas Regiões Sul e Sudeste do país, 21% das crianças de 5 a 17 anos de idade exercem algum tipo de atividade. E ainda mostra que a pobreza mantém 870 mil crianças e adolescentes brasileiros trabalhando em atividades perigosas ou insalubres, perpetuando esta condição (Jornal do Brasil, 7/5/2002, p.6).
Manter a quase totalidade de crianças e jovens, de 7 a 14 anos, matriculados e freqüentando a escola não significa por si só democratização no sentido amplo. Alceu Ferraro (1999), no estudo apresentado sobre freqüência escolar (e não sobre matricula), distingue três grupos de crianças e jovens: os incluídos na escola, que são os que freqüentam a série esperada ou antecipada, os excluídos da escola que são os que não freqüentam escola e os excluídos na escola que são: (i) os que apresentam uma freqüência levemente defasada (até dois anos de defasagem idade/ série) e (ii) os que apresentam freqüência fortemente defasada (mais de dois anos de defasagem). Trabalhando com os dados da contagem da população de 1996, feita pelo IBGE, verifica que, a média no Brasil de forte defasagem idade/série, aumenta em cada ano etário (de 0,4% nas crianças de oito anos, atinge 30,8% nas de 14 anos de idade); a leve defasagem, embora não siga a mesma regra, tem suas médias variando de 19,6% a 23,6% e a não freqüência acontece em todas as idades, desde os 7 aos 17 anos [5], sendo que os últimos chegam à média de 46,2%. Subjacentes às sucessivas repetências estão vários fatores que não caberia analisar neste texto, porém, fica posto que, se já caminhamos para a quase totalidade de matrículas, ainda temos muito a construir em direção a uma estrutura social que permita que a escolaridade seja prioridade na vida das crianças e jovens e que estes, por sua vez, sejam olhados pela escola nas suas especificidades para que a inclusão efetivamente aconteça.
Quanto à vida privada, a sociedade agrícola e rural manteve, durante muito tempo, a estrutura social colonial descrita nos livros de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos. Estes relatos trazem a importância que a família extensa dos senhores de engenho teve na nossa formação social e econômica, mostrando o quanto as relações familiares não eram apenas relações afetivas de confiabilidade, mas também relações de poder que caracterizaram as relações sociais. Ainda hoje, resquícios destas relações aparecem em diferentes situações como garantia de benefícios e/ou privilégios. Ser parente de alguém de poder abriria portas em diversas situações como indicações de emprego, “pistolões” e até mesmo o nepotismo. O modelo familiar construído a partir da casa grande, seria a de um casal com filhos, articulado a uma rede ampla de parentesco (avós, tios, primos, sobrinhos), ou seja, a família extensa, aglutinando várias famílias conjugais, cujos homens, casados com muitos filhos, teriam a função ativa de provedores, e as mulheres valorizadas pelo número de filhos que tivessem (Medina, 2002).
Entretanto, o contingente populacional de escravos, propriedade de terceiros, não tinha o direito de constituir família. Até a promulgação da Lei do Ventre Livre, os filhos dos escravos eram propriedade dos senhores. Quando sobreviviam aos primeiros anos de vida, moravam nas senzalas numa grande coletividade, trabalhando desde pequenos, inicialmente acompanhando as mães e depois de forma independente. A existência ou extensão de uma rede familiar entre os escravos dependia da flutuação do tráfico e do comércio escravos. Por isso, seus laços familiares eram mais de compadrio que sangüíneo[6]. O batismo católico, com madrinhas e padrinhos, era o que garantia entre os escravos e sobre as fronteiras dos plantéis os laços parentais (Góes e Florentino 2000).  Depois desta lei, com pais e padrinhos escravos e, em muitos casos, sem a proteção do dono, ficaram expostos à própria sorte, engrossando a massa de miseráveis que viviam na periferia e/ou vagabundeando pelas ruas da cidade. As crianças e jovens livres que continuavam trabalhando nas fazendas tornaram-se ainda mais despossuídas das condições básicas de moradia, alimentação, educação e garantias trabalhistas. Essa falta de condições se agravou com a  abolição da escravatura, responsável por levar à periferia dos grandes centros um número significativo de ex-escravos desempregados, crianças e adultos em busca de “biscates” ou “bicos” para sobreviverem. Del Priori (2000,p.13) mostra que as primeiras estatísticas criminais elaboradas em 1900 já revelavam que estes filhos da rua, então chamados de “pivettes”, eram responsáveis por furtos, gatunagem, vadiagem e ferimentos, tendo na malícia e na esperteza as principais armas da sobrevivência.
Segundo Medina (2002, p.3) duas são as repercussões destes fatos na camada social menos favorecida economicamente formando um verdadeiro paradoxo: 1) a eliminação da responsabilidade paterna e (2) a suposição, para a mulher pobre, de que, tendo filhos, manteria junto a ela o homem, o pai de seus filhos. Este paradoxo provocou muitas formas de estrutura familiar, em que adultos e crianças, mantiveram (e ainda mantém) relações, responsabilidades, funções e valores também diversos.
Por outro lado, Del Priori (2000) relata o quando a evolução da intimidade entre nós foi precária em todas as classes sociais:
Os lares eram monoparentais onde a mestiçagem, a pobreza material e arquitetônica que traduzia-se em espaços onde misturavam-se crianças e
adultos de todas as condições, a presença de escravos,a forte migração interna capaz de alterar os equilíbrios familiares, a proliferação de cortiços, no século XIX, e de favelas, no século XX, alteravam a noção de privacidade que se pudesse ter no Brasil, até bem recentemente, de privacidade tal como ela foi concebida pela Europa urbana, burguesa e iluminista (p.11).

A vida privada brasileira foi conquistada recentemente pelos grupos mais favorecidos da sociedade. A falta de privacidade nas periferias urbanas ainda é um fato presente nos lares super habitados, nos espaços partilhados das  favelas e quintais, onde parentes e vizinhos convivem numa grande sociabilidade.
A inadequação das teses européias diante da nossa realidade, no entanto, permite entender que o sentimento de infância foi sendo construído dentro da mesma lógica dicotômica escravista de senhores e escravos, repleta de distorções e fruto de desigualdade. Enquanto os filhos dos senhores mandavam e o adulto escravo obedecia, os filhos de escravos, de mestiços, de imigrantes[7], diante da pobreza e da falta de escolarização trabalhavam[8]. Na sombra dos adultos, de uma sociedade estratificada, foram sendo construídas as muitas histórias das crianças brasileiras:
No Brasil foi entre pais, mestres, senhores e patrões, que pequenos corpos tanto se dobraram à violência, às humilhações e à força quanto foram amparados pela ternura dos sentimentos familiares mais afetuosos. Instituições como as escolas, a Igreja, os asilos e recentemente as unidades da Febem e Funabem, a legislação ou o próprio sistema econômico fez com que milhares de crianças se transformassem precocemente, em gente grande. Mas não só. Foi a voz dos adultos que registrou, ou calou, sobre a existência dos pequenos, possibilitando ao historiador escrutar este passado utilizando seus registros e entonações (Del Priori, 2000, p.14).

A reconstituição do cotidiano infantil, dos diferentes grupos sociais e regionais, feita por historiadores, sociólogos, antropólogos, poetas, pintores através de registros de diferentes fontes, tem permitido conhecer a trajetória histórica dos comportamentos e das formas de ser e de pensar sobre a criança brasileira, desconstruindo a idéia de uma natureza ou essência infantil idealizada e universal, tão difundida pela pedagogia.
Assim, por exemplo, podemos hoje conhecer os cuidados dados aos recém nascido dos anos setecentos através das recomendações dos manuais de medicina como o do médico mineiro Francisco de Mello Franco, que  ensinava as mães a envolver seus filhos em mantilhas suaves e folgadas, em vez de apertá-los em faixas, a substituir as pegajosas abluções com óleos por água e sabão e a estopada que envolvia a cabeça do bebê por barretinho ou touca de pano branco, a não dar aos recém-nascidos alimentos engrossados com farinhas, como era de costume, pois causavam toda sorte de problemas como lombrigas, cólicas, inchações no vente entre outros (Del Priori 2000).
Devido à mortalidade infantil, nos séculos XVII e XVIII, que atingia a todas as classes sociais, a preocupação das mães não era apenas alimentar os filhos, mas dar de comer até ficarem arredondados[9]. Além das papas de  farinha, era um costume da época, herdado das negras e índias, a técnica de pré-digestão de alimentos, embebidos na saliva dos adultos; fato entendido por viajantes, como o austríaco Ernest Ebel[10], como falta de higiene e não como cuidado.
Os relatos também informam sobre os acalantos para embalar, acalmar  ou adormecer as crianças pequenas, que eram cantigas, de ritmo repetitivo, de origem portuguesa, mas que também existiam na tradição indígena tupi, e sobre as histórias contadas pelas mães negras com pretos velhos, papa-figos, boitatás, cabras-cabriolas etc que fecundavam o imaginário infantil. Histórias de assombração que rondavam casas grandes e senzalas aterrorizando  meninos e meninas, especialmente os que eram considerados  malcriados. E foram também as mães negras que enterneceram as relações entre o mundo adulto e o infantil, criando uma linguagem especial duplicando a sílaba tônica nas palavras como: dodói, bumbum, cacá, pipi, papá,  tentem, dindinho, nhanhá.
Cuidados e gestos de carinho faziam parte do relacionamento afetivo entre adultos e crianças pequenas. Os mimos se estendiam aos negrinhos escravos ou forros que eram tratados, como diz Ariès (1986, p.10) como animaizinhos, macaquinhos impudicos. Debret, pintor francês em passagem pelo Brasil no início do século XIX, ilustra este sentimento em alguns desenhos como, por exemplo, a cena onde uma criança negra engatinha nua aos pés da senhora branca que costura sentada num canapé de palhinha ou ainda a cena em que um casal (branco) sentado à mesa para uma refeição leva um pedaço de alimento à boca de uma criança negra que se aproxima[11]. Relatos de viajantes estrangeiros mostram que consideravam estes carinhos excessivos e os moralistas dos anos setecentos os condenavam. Pois, para eles, a boa educação implicava em castigos físicos, nas tradicionais palmadas e até em açoites e uso de palmatórias, muito comuns a partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das Aulas Régias[12]. A educação das crianças, das classes mais abastadas, assim que ficavam maiores, incluía as recomendações dos compêndios de doutrina católica, com orações, agradecimentos antes das refeições e confissões semanais; os livros de histórias exemplares e as cartilhas de alfabetização. As medidas disciplinares como bolos, beliscões, surras de cinto ou de vara de marmelo revezavam com as risadas e mimos, divertimentos, brincadeiras e festas.
Os quadros e relatos de Debret também retratam as procissões de enterro de recém-nascidos enfeitados de anjinhos, crianças vestidas para participar de festas religiosas, bebês brancos sendo amamentados por amas negras de leite, crianças às costas das mães negras ou ajudando a vender ao lado de um tabuleiro e muitas outras imagens onde podemos observar o cotidiano das crianças do Império.
No outro lado do foco, relatos de memórias trazem a experiência infantil com todo seu realismo, desmistificando a idéia de inocência e de infância feliz. Graciliano Ramos, por exemplo, no seu romance Infância (1945), revela o quanto foi árdua a sua experiência de criança, nos fins do século XIX e início do XX, vivida quase toda no interior de Alagoas, junto a uma família de classe média com prole numerosa. Longe de afetos, o menino Graciliano (1984) conta com detalhes a dureza da sua trajetória de vida, onde a indiferença e a injustiça aparecem desde a primeira infância:
As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, figurei-me na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar este papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural (p.31).

Drummond traz o castigo de uma mal-criação, no poema  Revolta, mostrando o sentimento de humilhação, pela intimidação sofrida pela criança ao ter que passar um dia inteiro com um pão pendurado no pescoço:
Revolta
Não quero este pão- Quinquim atira
O pão no chão

A mesa vira vidro, transparente
De emoção
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
O pão jogado no chão.

O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este  pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
O pão no seu pescoço
E vai ficar o dia todo
De pão no peito, expiação

Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
No pescoço humilhado
E ostenta o dia todo
A condecoração

Kramer (1982), incitada pelas pesquisas de Charlot[13], ajuda a compreender que os dois aspectos do sentimento de infância  descritos por Ariès - a “paparicação“ e a ”moralização” - aparentemente contraditórios, se completam na concepção de infância enquanto essência infantil, mascarando a significação social da infância. A dependência da criança em relação ao adulto é um fator social e não natural, que varia de acordo com a classe social e que tem uma forte significação econômica:
Tal significação econômica da infância está na base do valor atribuído à criança nos domínios da realidade social. A criança não é, pois, valorizada de maneira uniforme; as relações entre crianças e adultos são heterogêneas bem como é diverso o valor com que as crianças são encaradas numa e noutra classe. Tratar da criança em abstrato, sem levar em conta as diferentes condições de vida, é dissimular a significação social da infância. O pensamento pedagógico, ao fazer essa dissimulação deixa de lado a desigualdade social real existente entre populações, inclusive infantis (p.21).

            São as formas de organização da sociedade e as condições de existência e de inserção da criança em cada contexto social, econômico, político e cultural que vão delineando as diferentes concepções de infância e as diferentes formas de ser criança. Portanto, nas histórias individuais e coletivas das crianças brasileiras não tivemos e não temos uma resposta única às perguntas: o que significa ser criança? Quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adultos?

Infância e teoria crítica da cultura
            Benjamin ao analisar criticamente a modernidade, relaciona o progresso e o desenvolvimento ao empobrecimento da experiência humana e alienação da linguagem. Faz uma crítica à concepção evolucionista de história como tempo contínuo que caminha irremediavelmente para o futuro que, em nome do progresso, descarta o passado, considerando-o antigo e velho. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo (Benjamin, 1993, p.229).
            Em seus escritos, Rua de mão única, Infância berlinense e Imagem e pensamento, Benjamin não se limita a trazer recordações da sua infância, mas, dando voz ao menino, traz a forma como ele via e sentia o mundo, falando também de um momento histórico e de uma sociedade.
Esta objetividade permite ao leitor o despertar da sua própria infância e nesta rememoração, emerge o tempo saturado de agoras, quebra-se a idéia de tempo linear e amplia-se o sentido de coletividade, O menino Walter fala dele, do seu momento histórico e inserção sócio-cultural, trazendo uma história que é simultaneamente individual e coletiva, história que pode ser continuada e re-significada dentro de cada um de nós a partir da nossa experiência de ser criança, história que também continua na experiência de ser criança em qualquer tempo e espaço.
Assim, Benjamin traz a criança que brinca a partir dos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro, que com estes restos estabelece, nas suas brincadeiras, uma nova relação entre os materiais, formando o seu próprio mundo das coisas. Mostra a criança desordeira, que toda pedra que encontra, toda flor colhida e toda borboleta apanhada é para ela o começo de uma coleção e tudo que possui se constitui numa única coleção. Criança cujas gavetas transformam-se em arsenal e zoológico, museu policial ou cripta. Criança que dá uma nova ordem aos seus objetos e que qualquer arrumação feita pelos adultos é a destruição de uma obra repleta de significados.Criança que percorre os países e povos dos seus selos. Criança que lambisca, que pela fresta do guarda-comida entreaberto avança sua mão como um amante pela noite em busca de açúcar ou amêndoas, uvas passas ou geléia. Criança que chega atrasada na escola, que permanece em silêncio até o sinal tocar e a matraca do professor parar. Criança que anda de carrossel, que girando aos trancos distancia-se de sua mãe e vai vencendo o medo de abandoná-la ao se dar conta de que volta para o mesmo ponto, podendo, então, percorrer florestas virgens com seu animal, agora, dócil.  Criança que conhece os esconderijos da casa, que atrás do cortinado, converte-se em fantasma, atrás da porta, ela própria é porta, que se for descoberta nestes esconderijos pode petrificar-se e tornar-se eternamente fantasma ou porta e, desta forma, antes de ser achada, se antecipa com um grito de auto-libertação. Criança que lê, que entra dentro do livro com ilimitada confiança, que se mistura aos personagens de maneira muito mais íntima que o adulto e que o desenrolar e as palavras trocadas nas histórias têm tanta força para ela, que quando se levanta está envolta pela nevasca que soprava na leitura (Benjamin, 1984, p.77-81).
Criança que ouve no sacudir dos tapetes a língua da camada  mais humilde, para ela, os verdadeiros adultos. Criança que sente a “tradição” nas suas mãos ao tocar as meias enroladas no fundo da gaveta, que ao decidir que presentes seriam guardados no armário, onde tudo que era guardado a chave permanecia novo por mais tempo, entende que seu propósito não era conservar o novo e sim renovar o velho. Criança que, mesmo morando em um bairro de proprietários e desconhecendo a existência de outros bairros, diferentemente das crianças ricas da sua idade que viam os pobres como mendigos, começa a entender que a origem da pobreza está na ignomínia do trabalho mal remunerado. Criança que traz os valores e a experiência sensível do cotidiano: a mãe costurando e sua caixa de costura a tornando irmã de Branca de Neve, a pista de patinação com a música da charanga, o passeio de bicicleta, as conversas telefônicas, as caçadas de borboleta na casa de veraneio, a expectativa da viagem de férias e o retorno, a maçã assada das manhãs de inverno, os gestos da criada da casa da tia, a notícia da morte do primo, o mercado com as negociantes e as filas das donas-de-casa, a rua e as casas onde moravam as avós, as histórias de Grimm e da carochinha, os versos e rimas infantis que alimentaram o seu imaginário, as cores dos papéis que embalavam os chocolates, a jóia que a mãe usava nas festas, a luz da árvore de Natal, a febre das doenças infantis, o sonho com o fantasma, a sua escrivaninha, os decalques, as coleções de selos e de cartões postais, o banho na piscina pública, o jogo das letras, o zoológico e a jaula da lontra.Criança que tem medo, de não colocar a corrente na porta e também dos sonhos noturnos com personagens das histórias. Criança que, neste rememorar, traz a imagem do Corcundinha, personagem de uma história de Georg Scherer, que fazia travessuras e deixava as crianças em situações embaraçosas. Embora não visse este homenzinho, sentia que ele andava sempre à sua frente, que era sempre visto por ele e este olhar tirava-lhe a atenção das coisas. Mais tarde sua mãe o revelou o nome “Sem jeito mandou lembranças”, o que sempre lhe diziam quando quebrava ou deixava cair alguma coisa. O Corcundinha, para o menino,  tem imagens nítidas desta criança e sua voz, que faz lembrar o zumbido da chama de gás, o cochicha para além do limiar do século, pedindo para rezar por ele (Benjamin,1993, p.73-142).
Os textos e fragmentos do autor, como uma mônada que contêm na parte a totalidade, vão dando voz a criança totalmente inserida na história, parte da cultura e produtora de cultura.
Nos seus escritos citados, especialmente em Infância berlinense, Benjamin recupera o mundo da cultura dos pais, mas ao mesmo tempo recupera a maneira de ver da criança, a sua sensibilidade, seus hábitos, desejos, afetos e valores e, sob este ângulo, Bolle (1984,p.13) afirma que o texto se lê como se fosse um relato de criança para criança, à margem da cultura adulta, reafirmando a especificidade do mundo infantil. Porém, o mundo dos adultos, completa Bolle, não se opõe em bloco ao mundo da criança, há os que sabem e o que não sabem dialogar. Muito mais próximo da criança que o pedagogo bem-intencionado lhe são o artista, o colecionador e o mago (p.14).
 Benjamin, além da visão filosófica de infância como categoria central no estudo do homem, se interessa pela história dos brinquedos e dos livros infantis. Mostra que, se por um lado os brinquedos documentam como o adulto se coloca em relação ao mundo da criança e até mesmo como impõe a sua expressão, por outro, é no brincar, no uso que a criança faz do brinquedo, que ela corrige e muda a sua função. Além disso, a criança também escolhe os seus brinquedos, a partir dos elementos da natureza e do que os adultos jogam fora, pois as “crianças fazem história a partir do lixo da história”, aproximando-se dos “inúteis”, dos “inadaptados” e dos marginalizado (Bolle, 1984, p.14).
Quanto aos livros infantis, Benjamin (1984, p.47) foi um colecionador que  não perdeu o júbilo infantil por eles e afirma que somente uma pessoa que se conservasse fiel à alegria que o livro infantil desperta na criança poderia descobrir este novo campo para o colecionador- o livro infantil.  Via nos livros do passado e suas ilustrações, resíduos do mundo dos sonhos, testemunhos que conservaram a capacidade de contestar a continuidade histórico-cultural que homogeneíza o tempo e que só pode propor a apologia do que existe, via neles também a liberação da escravidão da utilidade e das leis do mercado e a indicação de caminhos para a imaginação da criança:
Frente ao seu livro ilustrado a criança coloca em prática a arte dos taoístas consumados: vence a parede histórica da superfície e, esgueirando-se entre tapetes e bastidores coloridos penetra no palco onde o conto de fadas vive (...) Nesse mundo permeável, adornado de cores, onde a cada passo as coisas mudam de lugar, a criança é recebida como companheira. Fantasiada, com todas as cores que capta lendo e vendo, a criança entra no meio da mascarada e também participa dela.Lendo - pois encontram-se as palavras adequadas a esse baile de máscaras, as quais revolteiam confusamente no meio da brincadeira como sonoros flocos de neve (Benjamin, 1984, p.55).

Além de discutir os livros de literatura infantil, suas histórias, ilustrações e autores de diferentes épocas, e de criticar as adaptações do universo lúdico e mágico dos contos de fadas, feitas pelos pedagogos, Benjamin comenta cartilhas em que a criança aprende brincando e escreve a partir do desenho e do jogo das letras.
O autor critica os filisteus - os pedagogos que têm como tarefa inculcar em crianças e jovens princípios e valores imperativos – e questiona a pedagogia burguesa afirmando que a burguesia vê sua prole enquanto herdeiros; mas aos deserdados enquanto apoio, vingadores ou libertadores (Benjamin,1984,p.89). Entende que, pelo fato da criança proletária nascer dentro de uma classe, aquilo que deve tornar-se não é determinado por nenhuma meta educacional doutrinária, mas pela situação de classe. Benjamin dá ênfase também à política, mostrando a manipulação fascista dos jovens, os horrores da guerra e as desigualdades.
Este mergulho de Benjamin dá no universo infantil permite a certeza, como afirma Pereira (1984, p.11), de que a criança é o pai do homem e a consciência de que a roda do destino começa a girar muito cedo, e num estalo fixa as chaves-mestras da nossa existência. A partir desta visão, Kramer (1996, p.33-34), chega aos seguintes eixos – iniciais e provisórios - da concepção de infância em Benjamin: não infantilização da criança, criadora de cultura, colecionadora, rastreadora; desnaturalização da criança, desnaturalização do ser humano, relação crítica com a tradição; subversão da ordem, pois a criança desvela as contradições e revela outra maneira de se enxergar o real;  crítica à pedagogização da infância- crítica ao pedagogos; dominação como antieducação; denúncia à didatização, crítica ao autoritarismo; criança, conhecimento e história; reconhecimento do adultocentrismo, contra o autoritarismo da idade; reconhecimento da especificidade da infância e história, linguagem, descontinuidade - eixo maior que a incorpora em todos os outros.
Esta concepção de infância, ampliada à própria condição humana, ainda, segundo a autora, possibilita o entrecruzamento teórico-prático das perspectivas: histórica, filosófica, psicológica, política, cultural, antropológica, artística e ética. E é justamente este olhar multi, inter e transdisciplinar, que pode romper a parcialidade e a justaposição dos enfoques que tem trazido a dicotomia entre o ser e o vir a ser da criança. A linguagem vista como chave e fio condutor, se faz presente em todas as esferas, pois são os discursos que nos constituem e que constituem as diferentes perspectivas teórico-práticas, além de permitir dar e ouvir a voz da criança, rompendo a linearidade espaço-temporal.
Referência bibliográficas
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[1] Este texto é parte do Capítulo I da Tese de Doutorado da autora. CORSINO, Patrícia. Infância , linguagem e letramento: educação infantil na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Departamento de Educação- PUC-Rio. Rio de Janeiro: PUC-Rio,2003.
[2] Ver KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982
[3] A Roda era um dispositivo giratório de madeira, em forma de cilindro, que possuía uma abertura, inserido em uma parede, de forma que, como uma janela, desse acesso à parte interna da instituição ao ser acionado. A criança era depositada no compartimento, e o depositante rodava o cilindro para que a abertura se voltasse para dentro, preservando a identidade do depositante. A Roda funcionou no Rio de Janeiro até 1938 (Couto e Melo, 1998, p.22).
[4] As crianças de 8 a 9 anos eram encaminhadas a fazendas onde prestavam serviços e posteriormente ao Arsenal da Marinha onde executavam trabalhos nas embarcações (Couto e Melo, 1998 entre outros)
[5] Ferraro aponta as seguintes médias  percentuais de crianças e jovens que não freqüentam escola:
Idade
7 anos
8 anos
9 anos
10 anos
11 anos
12 anos
13 anos
14 anos
15 anos
16 anos
17 anos
% de não frequência
5,2
2,5
2,1
2,3
3,0
5,0
9,1
16,1
24,9
34,7
46,2
 Fonte: IBGE- Contagem da população de 1996. Elaboração Alceu R. Ferraro.
[6] Segundo Góes e Florentino (2000, p. 182), o compadrio católico unia escravos e unia plantéis. É interessante observar que, ainda hoje, a palavra padrinho carrega a marca da proteção. Ter um padrinho no trabalho é ter alguém que possa garantir a estabilidade e acobertar as faltas ou desvios. O dito popular endossa esta idéia: quem tem padrinho não morre pagão. É ainda costume das classes populares chamar o patrão/patroa, alguém de prestígio ou de uma classe social mais favorecida para batizar os filhos.  

[7] No final do século XIX, a entrada maciça de imigrantes como força de trabalho, no início da nossa industrialização, trouxe a imagem das crianças trabalhando nas fábricas, de baixo custo e que chegavam a passar até 11 horas frente às máquinas.
[8] Segundo Del Priori (idem, p.12), as mulatas ou negras forras e seus pais, que integravam o movimento de mobilidade social ocorrido em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, tiveram eles também os seus escravos. Muitas vezes seus próprios parentes ou até mesmo os irmãos!
[9] Provavelmente estaria aí a origem da preocupação que ainda vemos nas classes populares de alimentarem excessivamente os bebês com minguas e papas, sendo a gordura um valor percebido. É muito comum elogiar um bebê por estar gordinho, fofo, gorducho etc. 
[10] Rio de Janeiro e seus arredores em 1824, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972, p.138, citado por Del Priori, 2000, p.105.
[11] Ver Rio de Janeiro: cidade mestiça. Reprodução de Gravuras de Debret. São Paulo: Companhia das Letras.
[12] Os jesuítas do período colonial já aplicavam o castigo físico nas crianças, fato que assustava os indígenas que desconheciam o ato de bater em crianças.
[13]  A autora se refere ao texto de CHARLOT, Bernard. La mystification  pédagoguique.

Comentários

  1. Excelente texto: informativo, preciso e esclarecedor.

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  2. Estou tendo o prazer de ser aluna da Professora Patrícia na UFRJ, inclusive utilizamos esse texto. Realmente muito bom! Inspirador para nós, educadores.

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