Educação de corpo inteiro


                                                                                                                        Por Daniela Guimarães

De um modo geral, na escola, o corpo é compreendido e vivido na perspectiva do controle, da adaptação e da repressão. O ajuste social aprisiona a expansão, o espaço dos impulsos e dos prazeres. É preciso e precioso o silêncio, o uniforme limpo e alinhado, o jeito correto de se sentar, o dedo levantado para a pergunta, o gesto calculado para não agitar o ambiente. O cenário de uma escola costuma ser reconhecido pela presença de cadeiras e mesas, quadro de giz, murais, ou seja, equipamentos materiais que legitimam a valorização dos processos de representação (escrita, desenho, e outras marcas gráficas), em detrimento de espaços para a acolhida e a movimentação do corpo.

A dimensão individualizante do trabalho também contribui para o isolamento corporal: carteiras para uma só criança, atividades individuais, práticas em que o valor é colocado mais em cada um do que no grupo. Na escola, os processos mentais têm primazia, em detrimento do corpo que, de modo geral, ocupa o plano da eficiência, como instrumento do pensamento, funcionando como ponto de aplicação de diversas técnicas – segurar corretamente o lápis, subir escadas alternando os passos com sincronia, equilibrar-se, sentar de modo ereto, dentre outras.

De um modo geral, as ações educacionais valorizam mais as crianças como indivíduos do que como participantes de um grupo social, incentivam mais os processos racionais do que os motores, sensoriais e afetivos. Esta situação enraíza-se nas concepções de desenvolvimento e aprendizagem que sustentam o trabalho nas escolas. Diversos autores, especialmente do campo da Psicologia, elaboraram visões sobre como as crianças aprendem e se desenvolvem que são incorporadas pelas teorias pedagógicas, tendo em vista a organização das práticas e dos modos de ensino nas instituições educacionais. Neste texto, vamos apresentar algumas destas teorias do campo da Psicologia, com o objetivo de focalizar o lugar que o corpo assume em suas formulações.

 Em suas pesquisas, na área da Psicologia, Piaget buscava responder à seguinte questão: como o adulto chega a pensar de modo hipotético e dedutivo, quer dizer, criando hipóteses sobre acontecimentos futuros ou planejando mentalmente suas ações antes de serem realizadas? Como a criança deixa de precisar dos sentidos (olfato, visão, tato, etc.) ou da experiência direta com os objetos para conhecê-los, podendo fazer isto somente através da sua ação mental? De acordo com Piaget, no início, quando a criança é pequena, até mais ou menos os 6 anos, para conhecer um objeto, é preciso manipulá-lo, senti-lo, tê-lo presente. Por exemplo, não é possível entender quanto é a soma de 2 laranjas mais 3 laranjas, se não for possível tocar e mexer nas laranjas de verdade. Mais tarde, a criança não precisará mais lidar materialmente com os objetos para concluir relações entre eles, mas conseguirá mentalmente resolver problemas que envolvam essas relações: a soma, a comparação entre as laranjas, etc. Piaget estudou como o homem chega a não precisar dos objetos concretos para extrair deles relações, como faz isso mentalmente, pensando sobre eles.

Piaget estudou também como nasce o conhecimento abstrato, ou seja, independente da ação do homem sobre os objetos; como é gerado o conhecimento lógico, mental. Este projeto de estudo piagetiano denomina-se Epistemologia Genética. Genética significa a gênese, isto é, a origem do conhecimento. Episteme significa científico; e logia quer dizer estudo. Piaget pesquisou a origem do conhecimento científico no homem. Neste processo, investigou o desenvolvimento intelectual (o desenvolvimento da inteligência), dividindo-o em quatro grandes períodos: período sensório-motor; período pré-operatório; período das operações concretas e período das operações abstratas (ou formais). A própria definição do projeto piagetiano já expõe o seu limite na consideração do corpo.

O conhecimento pela via das sensações e do movimento é algo a ser superado, tendo em vista a competência mental, que se coloca como o ponto de chegada final do desenvolvimento, o pensamento abstrato, formal, hipotético e dedutivo. Conhecer é construir relações lógicomatemáticas no contato com os objetos.

 A partir das bases piagetianas, muitos projetos educacionais centram seu trabalho na construção das estruturas mentais das crianças, planejando atividades em que o foco é organizar objetos logicamente, classificar, seriar, perceber diferenças e semelhanças entre eles. A competência intelectual e individual da criança marca as práticas. Vigotski, também no campo da Psicologia, dedicou-se a identificar o “nascimento cultural” da criança, a partir do substrato biológico (essencialmente corporal) que a constitui. Este autor propõe uma abordagem dialética para a relação entre biológico e cultural, corpo e mente, compreendendo que as construções socioculturais transformam o suporte biológico que, paralelamente, abre-se para novas elaborações simbólicas. Para este autor, a vida interpsicológica, a cultura na qual nasce a criança, torna-se sua vida intrapsicológica, formando suas competências particulares, a partir de processos de negociação e re-criação constantes. Vigotski (1984) estuda o gesto de apontar como indicador da origem do processo de constituição sociocultural das crianças. Sobre isso, ele diz que, inicialmente, esse gesto não é nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa. Mas, quando a mãe vem e ajuda a criança, notando que o seu movimento indica algo, a situação muda; o apontar tornase um gesto para os outros, para a mãe, neste caso. Então, pegar um objeto transforma-se em apontar, pela compreensão que o adulto mostra ter da ação da criança. Um comportamento de base biológica ganha novo sentido, torna-se comportamento dirigido para outra pessoa, comportamento social, pelo contato com o outro.

Baseado em Vigotski, o trabalho de Pino (2006) dedica-se a buscar os indícios das origens da constituição cultural da criança no ponto onde ocorre o encontro das formas simbólicas de comunicação adulta, com as quais o outro significa as coisas à criança, com as formas biológicas de comunicação da criança (formas que ela dispõe ao nascer). O autor indaga se existiriam, antes do movimento de apontar, outros mecanismos que, sem exigir a funcionalidade motora do apontar, poderiam desempenhar um papel equivalente. Ou seja, antes da existência da funcionalidade motora, seria possível falar já de uma atividade cultural? Nesta pista, identifica quando e como formas de reatividade do corpo tornam-se expressivas, portadoras de significação. Destaca o choro, o olhar, o movimento e o sorriso como mecanismos que promovem essa relação entre natureza e cultura, localizando, através da relação do adulto com essas expressões do bebê, a construção de padrões relacionais com o mundo cultural circundante.

Desde os primeiros instantes da existência, diferentes mecanismos culturais entram em ação, conferindo ao movimento do bebê um caráter cada vez menos automático e cada vez mais imitativo e deliberativo. Então, choros, sorrisos, deslocamentos e olhares são interpretados pelos adultos, criando formas relacionais com os bebês. A forma natureza (reflexos, movimentos fortuitos, balbucios, etc.) adquire um novo modo de existência quando ganha significação nas relações interpessoais. Ou seja, no início, a função sensorial e a função motora constituem o primeiro circuito de comunicação da criança com o outro. Podemos ver as crianças trocando objetos, olhares, muitas vezes de forma casual e contingente. Ao entrar em funcionamento, esse circuito as coloca numa rede de relações em que suas ações vão ganhando significação, de acordo com a tradição cultural do seu grupo. Pouco a pouco, ganham intencionalidade, sentido e direção. Neste enfoque, o corpo é entendido como espaço de construção simbólica e cultural a partir da relação com o outro. O mundo adulto insere a criança no universo das construções simbólicas e verbais, quando, por exemplo, nomeia a ação das crianças, tutela suas expressões, controla seus movimentos.

Pino (2006) propõe que “a cultura supõe a natureza, porque ela é, em última instância, a própria natureza transformada em cultura, mas uma natureza que, sem deixar de ser natureza, torna-se algo novo” (p. 268), o que se pode chamar de “natureza humanizada”. Essa ponderação é importante porque chama a atenção para o risco da construção de dicotomias e desequilíbrio na valorização de um ou outro plano, o natural ou o cultural. De um lado, o trabalho de Vigotski chama a atenção para a importância das relações sociais na constituição cultural das crianças, valorizando o que podem descobrir e como podem crescer em colaboração com adultos e parceiros com experiências distintas. Por outro lado, é preciso desviar do risco de considerar o plano cultural como um ideal a atingir. É importante focalizar, por exemplo, as formas não-verbais através das quais o mundo vai sendo significado e experimentado. De um modo geral, os adultos se colocam como aqueles que já sabem o que a criança quer, deseja, para onde vai seu movimento. Se as vêem perto de um balanço, a tendência é colocá-las em cima dele; se percebem objetos perto de uma caixa, concluem que vão colocá-los dentro dela.

O referencial que Vigotski aponta para pensarmos a aprendizagem e a escola demanda que possamos focalizar os processos de negociação de sentidos das crianças entre si, e delas com os adultos, como diferentes relações de força se compõem. O que pode a criança no contato com o adulto, de fato? Qual sua potência, e não como se molda ao adulto? Trata-se de uma tênue e fundamental diferença que se coloca no cotidiano das escolas. Até que ponto o adulto tutela a ação das crianças, ou dispõe referências e apresenta possibilidades que podem ser agenciadas pela criança, no movimento do seu crescimento? No plano do corpo, o desafio é perceber como a dimensão natureza se torna cultura sem deixar de ser natureza, expressão de emoções e afetos não deliberados. Gestos e movimentos que nascem do imponderável, para obter prazer pelo prazer, podem tornar-se gestos para e com o outro, sem que se perca o espaço para o irrefletido, o inesperado, a surpresa, a alegria.

 De modo semelhante a Vigotski, as investigações do psicólogo Wallon buscavam como as conexões cerebrais modificam-se à medida que o ser humano relaciona-se socialmente. Conversas do bebê com a mãe, o colo dos adultos, poder ver e escutar outras pessoas, tudo faz com que as regiões do cérebro do bebê se ampliem e mudem suas funções. As interações sociais transformam os padrões biológicos. Wallon afirmava que o humano é organicamente social. Também como Vigotski, Wallon propõe que somos sujeitos a partir do outro, pela mediação do outro, ou seja, a partir da linguagem, que se coloca no meio, entre nós e o mundo, para organizar a nossa relação com ele. Mais uma vez, neste caso, o desafio é perceber a linguagem para além da dimensão oral, materialização do pensamento. Há linguagem nos olhares, no toque, na entonação, em outros modos de significar e trocar com o outro, para além da forma verbal dominante e socialmente mais valorizada – qual o lugar destas outras formas na escola? Wallon propôs três centros que se entrelaçam diferentemente, ao longo do desenvolvimento da criança: a afetividade, a motricidade e a cognição.

Num período inicial do desenvolvimento, no recém-nascido, predomina a afetividade (a inteligência ou cognição não se separa da afetividade). É o período denominado por ele como impulsivo-emocional (até por volta de 2 anos). Nesse momento, o autor reconhece algo como um "diálogo tônico", ou seja, uma espécie de conversa entre o bebê e o adulto por intermédio não só das palavras, mas do tônus corporal, da expressão facial, dos gestos, do contato físico. É na relação com o movimento e a fala dos adultos que a criança vai entendendo quem é ela e quem são os outros.

O processo de imitação tem um papel importante neste momento. Quando faz algo igual a alguém, quando busca imitar a palavra dita pela mãe, quando imita o jeito de a avó esconder um boneco embaixo de um pano, a criança ganha novos movimentos e vai inserindo em seu repertório a possibilidade simbólica, ou seja, a capacidade de representar ações e objetos ausentes do seu campo perceptivo, da sua visão presente. Conforme os movimentos se expandem e desenvolvem-se – o pegar, o andar e o deslocar-se no espaço – também os movimentos simbólicos aparecem. Trata-se do que Wallon denomina dos primeiros ideomovimentos, característicos do período sensório-motor projetivo (entre 2 e 4 anos). Wallon propõe que o ato motor – o deslocamento do corpo no espaço com cada vez mais desenvoltura e segurança – gera o ato mental. As primeiras idéias mentais das crianças nascem em seus movimentos. Ao observarmos crianças pequenas (de 3 anos, por exemplo) brincando, é comum percebermos que dos gestos brotam palavras e significados. Também quando desenham, só conseguem dizer o que fizeram depois que terminam e não antes. Ou seja, as palavras que retratam as idéias surgem nas relações e ações no espaço.

 É importante ressaltar que o ato mental inibe o motor, mas não deixa de ser atividade corpórea. Começa a haver uma economia no movimento quando o pensamento ganha um lugar maior, à medida que a criança mexe menos músculos para realizar tarefas. No entanto, Wallon reconhece nas atividades de pensamento o que ele chama de função tônica do movimento, ou seja, uma motricidade expressiva. Então, há dois tipos de atividade corpórea: a cinética, responsável pelo movimento, deslocamento, mudança de posição e a atividade tônica, presente na imobilidade e responsável pela expressividade. Para Wallon, por volta dos 4 anos, surge o período personalista, momento de afirmação do eu; e a partir dos 7 anos, o período categorial, quando o domínio cognitivo oferece as bases para que se desenvolvam as ações mentais de explicar, definir, diferir objetivamente o mundo. É relevante pensarmos que tanto a dimensão afetiva, quanto a cognitiva (mental) e do movimento estão em jogo em todos os momentos do desenvolvimento.

 Não há para Wallon superposição de uma pela outra, somente predominância alternada. Valorizar estes três planos no cotidiano da escola é um desafio! A contribuição de Wallon para pensarmos a escola traz algumas outras provocações: como equacionar a valorização tanto do movimento cinético quanto do tônico, quer dizer, a importância dos deslocamentos da criança no espaço, da expansão, correr, pular, saltar e a contração inerente ao pensamento? Como considerar o que o autor denomina como diálogo tônico, que aparece entre o bebê e o adulto, como forma de relação mediada pelo contato corporal, como algo importante para a vida inteira? Como o professor toca, olha, escuta e, pelas vias sensoriais, constitui uma qualidade afetiva na relação com as crianças no cotidiano? Autores contemporâneos do campo da Biologia e da Psicologia, Maturana e Varela, propõem que sujeito e meio são efeitos de uma rede processual, constituindo-se reciprocamente.

O princípio é a relação. Assim, não conhecemos um mundo preexistente, que existe independente de nossas ações nele. Não há separação entre nosso conhecimento do mundo e o que fazemos nele. Essa circularidade entre ação e experiência permite a afirmação de que todo ato de conhecer faz surgir um mundo. Quando nos debruçamos sobre a realidade para  conhecê-la, também produzimos essa realidade. Na relação entre sujeito e ambiente, ambos estão em constante mudança. A capacidade de o organismo produzir a si mesmo sem destruir sua unidade é denominada pelos autores de autopoiesis. Assim, a cognição, ou a produção de conhecimento, acontece no domínio das interações de todo o sistema autopoiético (onde a produção de sujeito e a produção de mundo acontecem simultaneamente). Portanto, o conhecimento não é algo que acontece na mente, mas em todo o corpo. Maturana e Varela chamam de enação a cognição corporificada, isto é, o fruto da ação do sujeito no mundo, possibilitada pelo corpo. A ação é guiada por processos sensoriais. A partir dessas idéias de Maturana e Varela, podemos dizer que a aprendizagem envolve a coordenação de corpo e mente e não somente a representação mental do mundo.

Aprendizagem não é repetição mecânica, mas atividade criadora, que envolve o acoplamento do organismo com o meio. Na escola, é importante focalizar quais as experiências sensoriais, afetivas e relacionais das crianças, tendo em vista percebermos quais mundos criam e como são constituídas como sujeito. A experiência produz o conhecimento e produz a própria criança, como exploradora, criadora, confiante em si, ou submissa, passiva, expectadora da ação do outro. A interlocução com a Filosofia dilata essa compreensão da aprendizagem como criação de um mundo, experiência e não representação mental, algo que acontece somente no pensamento. Deleuze (1987), analisando a obra de Proust, propõe que a aprendizagem acontece sempre por intermédio de signos e não pela assimilação de conteúdos objetivos; acontece quando um signo interpela o sujeito, no encontro, não como algo planejado de antemão. Para o autor, todo aprendiz é “egiptólogo” de alguma coisa, decifra signos que emanam dos objetos, do mundo, das relações.

Portanto, para a escola, coloca-se o desafio de organizar espaços, objetos, relações que incitem ao movimento, aos encontros, à alegria, à surpresa e ao imponderável. Isso não significa deixar de lado ou de fora o pensamento e a razão, mas de equacioná-los com o corpo e a emoção, na perspectiva de dar sentido e compreender os acontecimentos da vida, o que é diferente de controlar a vida, antes que ela aconteça.

Disponível em http://cdnbi.tvescola.org.br/resources/VMSResources/contents/document/publicationsSeries/181924Corponaescola.pdf


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ATIVIDADES PARA DIAS DE CHUVA