A psicomotricidade no processo de alfabetização

Laís Estrela Fernandes Leandro

Este artigo objetiva analisar como a psicomotricidade contribui para o processo ensino-aprendizagem na fase inicial da construção da leitura e da escrita (alfabetização), considerando a relação do movimento e da aprendizagem como um grande elemento constituinte desse processo, reconhecendo a criança como um todo, sem fragmentar corpo e mente. Para o desenvolvimento desta pesquisa foram analisadas obras de diferentes autores que abordam temas relacionados à psicomotricidade e alfabetização, e, dentre os assuntos, serão ressaltados a importância do corpo e do movimento na escola, a organização do tempo e do espaço, o desenvolvimento psicomotor e sua articulação com a alfabetização. Consideramos a grande influência do corpo e do movimento na apropriação da leitura e escrita como fator favorável para o sucesso das crianças das séries iniciais, além da necessidade de desenvolver habilidades psicomotoras como colaboração para o desenvolvimento pleno das crianças. A literatura consultada enfatiza a importância da inclusão de atividades psicomotoras no processo ensino-aprendizagem, destacando o corpo como a origem da cognição, do afeto e do motor, os três pilares da psicomotricidade.
Introdução
As classes de alfabetização (1º ano) são caracterizadas pela passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, e tal mudança para as crianças já é bem traumática, a começar pelo ambiente físico, normalmente mesas enfileiradas, quadro, instrumentos que não faziam parte das salas na Educação Infantil ou pela responsabilidade de aprender a ler e escrever. “Acabou a brincadeira”, dizem muitos. Nas salas, é comum nos depararmos com crianças o tempo todo sentadas, sendo exigido silêncio para a realização das atividades escolares. O que se esquece é que, para que as crianças possam ampliar o seu aprendizado, é necessário que os conteúdos estejam de acordo com seus interesses e necessidades, levando em consideração que, na brincadeira, a criança aprende e constrói seu conhecimento sem perceber, satisfazendo suas vontades e fazendo a representação da realidade que a cerca.
Em virtude de o período da alfabetização ser uma fase de grande importância na trajetória escolar da criança, não é nada fácil para ela lidar com todas essas mudanças, e, considerando isso, esta pesquisa busca correlacionar o processo de alfabetização com a psicomotricidade. Para isso, é necessário compreendermos o que é psicomotricidade. Usaremos um significado da Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (SBP), que a define como área de conhecimento1.
1 – Definição retirada do site da Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (SBP – http://www.psicomotricidade.com.br), acessado em 1o.06.2013.
Busca conhecer o corpo nas suas relações, transformando-o num instrumento de ação. Este corpo pensado como objeto, marcado por uma mente que pensa. A evolução da psicomotricidade no homem se dá de forma natural. Ela auxilia e capacita melhor o aluno para uma melhor assimilação das aprendizagens escolares. O corpo e o movimento constituem alicerces para o desenvolvimento da criança. No campo da psicomotricidade, a relação, a vivência corporal e a linguagem simbólica são imprescindíveis. A psicomotricidade permite à criança viver e atuar no seu desenvolvimento afetivo, motor e cognitivo.
Considerando essa definição, percebemos que a psicomotricidade, unida aos elementos cognitivos, favorece o desenvolvimento pleno da criança. “A psicomotricidade existe nos menores gestos e em todas as atividades que desenvolvem a motricidade da criança, visando ao conhecimento e ao domínio do seu próprio corpo” (ALVES, 2012, p. 144). Por isso, a psicomotricidade precisa ser valorizada na construção do processo ensino-aprendizagem nas classes de alfabetização.
Destacamos assim o quanto o processo de aprendizagem é complexo e que a criança, para se apropriar da leitura e da escrita, vai criando hipóteses. Por este motivo, buscamos ressaltar a fundamental participação da psicomotricidade para que as crianças vençam essa etapa mais tranquilamente, diminuindo o número de dificuldades causadas pelo seu não envolvimento nesse processo.
O corpo e o movimento na escola
O movimento é uma importante dimensão do desenvolvimento e da cultura humana. É através do movimento que as crianças expressam seus pensamentos, sentimentos e emoções, ampliando assim as possibilidades do uso significativo de gestos e posturas corporais. É através de gestos que as crianças exploram e conhecem o mundo onde vivem.
Na escola, há supervalorização do intelecto, a partir das ideias da modernidade, deixando de lado a linguagem corporal das crianças.
As grades escolares e a rotina das instituições educacionais expressam claramente esta evidência: a de que a escola não tem pelo corpo o mesmo apreço que tem pela mente. O resultado é um processo educacional “[...] do pescoço para cima” (TIRIBA, 2001, p. 17).
O Ensino Fundamental é visto como um lugar em que não existe mais espaço para o brincar, movimentar-se. Isso acaba na Educação Infantil. Os conteúdos são muitos, as rotinas são pesadas e não sobra tempo para isso. É sentar na cadeira, copiar a matéria do quadro, prestar atenção no que o professor explica e fazer os exercícios, parando somente para o recreio.
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A chegada ao Ensino Fundamental já é um período de grandes dificuldades, pois as crianças se deparam com mudanças, cobranças, outra realidade. O tempo que é dedicado a elas na escola para realizarem atividades físicas é muito pequeno comparado ao tempo que ficam sentadas olhando, ouvindo, prestando atenção a tudo o que lhes é explicado e fazendo suas atividades. Somente no recreio, elas são liberadas para brincar, para interagir com os colegas, para “ser criança”.
Para alguns professores, o cenário ideal para uma sala de aula é um ambiente silencioso, onde todos os alunos prestam atenção ao que é dito. Todos com o uniforme impecável, sentados corretamente. Os conteúdos muito bem explicados, exercícios, provas. Esse tipo de ambiente é muito conveniente para o professor, que pode dar sua aula tranquilamente, sem forçar sua garganta, sem se cansar. Será que esse ambiente também é agradável para os alunos?
Reservar um tempo para as crianças brincarem, para conhecerem o seu corpo e o do colega, para descobrirem novas sensações e aprenderem coisas novas através da brincadeira, para muitos professores é sinônimo de desordem, de gritaria e de bagunça. Nem todos os professores sabem valorizar esse momento tão importante para as crianças.
O papel do professor é fundamental, pois ele é o mediador do processo ensino-aprendizagem e é aquele que, no momento certo, pode intervir, caso o aluno encontre alguma dificuldade. O professor precisa refletir em relação ao movimento não como um simples deslocamento do corpo, mas como um momento de interação e relação com o mundo, já que o ato de escrever é uma forma de expressão.
Por isso, é necessário que se invista na formação dos profissionais alfabetizadores, para que reflitam e busquem aliar o trabalho da alfabetização com a psicomotricidade, respeitando o nível de desenvolvimento de cada criança nesse processo, proporcionando uma aprendizagem significativa.
A escola precisa parar de se preocupar somente com o intelecto da criança como se nada mais fosse importante, como se o lúdico, o corpo e o movimento não fossem importantes. A educação não é comprometida somente com o racional, mas também, de uma maneira especial, com o corpo e a emoção. A escola e os professores precisam rever seus planejamentos, seus métodos, e adaptá-los às necessidades físicas das crianças.
Trata-se de subverter currículos e rotinas escolares que são alienados em relação às vontades do corpo, às suas mais elementares necessidades de respirar profundamente, alimentar-se sadiamente, dormir bem, relaxar, não fazer, não pensar (TIRIBA, 2001, p. 18).
Trata-se de ensinar, apenas fazendo uso da brincadeira. É possível se aprender brincando? Para se ter uma aprendizagem completa, é preciso realizar atividades que utilizem os dois aspectos: intelecto e corpo; atividades que tenham conteúdo, mas que também valorizem a expressão do corpo da criança e, novamente, suas necessidades; valorizar exercícios sistemáticos e mecânicos, mas também os desorganizados, avulsos.
Não precisamos ensinar somente usando o quadro, passando exercícios sem significado algum para a criança. Por que não ensinar matemática com músicas e jogos? Por que não ensinar a criar textos coerentes a partir de uma brincadeira de faz de conta?
A escola, claro, é um espaço para se aprender a ler, escrever, contar, mas também precisa ser um lugar onde se aprenda a sentir, a relaxar, a brincar, a se conhecer, a construir autonomia e a conquistar sua independência, como afirma Tiriba (2001, p.19): “[...] uma escola comprometida com uma transformação social que tenha qualidade de vida como perspectiva precisa ensinar a atenção às verdades do corpo”.
Não estamos falando em desvalorizar o conteúdo, mas, sim, de dá-lo de uma maneira prazerosa para o aluno por meio de atividades lúdicas; as crianças, além de se divertir, interpretam, criam, relacionam-se com o mundo em que estão inseridos e aprendem muito melhor. É por esses motivos que, cada vez mais, é recomendado que o lúdico ocupe um lugar de destaque no currículo escolar, principalmente na Educação Infantil.
A organização do tempo e do espaço
O cenário de uma escola costuma ser reconhecido pela presença de cadeiras e mesas, quadro, giz, murais, ou seja, equipamentos materiais que legitimam a valorização dos processos de representação (escrita, desenhos e outras marcas gráficas) (GUIMARÃES, 2008, p. 20).
Quando pensamos em escola, não nos vem a cabeça um lugar agradável onde as crianças queiram ir. Por que será? Será que é porque a escola não é atrativa para a criança? Será que não é porque é um lugar onde a criança se sente presa? Onde precisa ficar comportada para aprender o que a professora tem a ensinar? Concordamos que a escola é, sim, um ambiente de aprendizagem, mas por que essa aprendizagem precisa ser sem significado para o aluno? Por que não organizar o tempo e o espaço para que a criança possa aprender, sim, mas de maneira prazerosa, significativa?
Por isso devemos pensar na organização da escola e da sala de aula, especialmente as salas das classes de alfabetização, que, além de esses ambientes serem favoráveis ao letramento, serem um ambiente alfabetizador, devem ser organizados de modo que favoreçam a movimentação das crianças, como também o acesso aos materiais. Guimarães (2006, p. 69) destaca que, ao considerarmos a criança como ser ativo, precisamos “[...] pensar em um espaço e um educador que deem apoio aos seus movimentos, que incentivem sua autoria e autonomia, que contribuam para a diversificação de suas possibilidades”.
O ambiente reservado para as crianças precisa ser um ambiente corporalmente desafiador. Deve ser organizado de modo que as crianças sejam desafiadas constantemente a ir e vir, a explorar ações que ainda desconheçam, a descer e subir, a experimentar sensações, a rolar, pular, entrar, sair, a conhecer o próprio corpo. Guimarães (2006, p.70) afirma ainda que “[...] o tamanho de um espaço para a criança não tem relação só com a metragem dele, mas relaciona-se com a forma como esse espaço é experimentado”.
Uma educação que valoriza as necessidades do corpo deve reservar um tempo para o uso da música. É interessante que conheçam e imitem vários estilos e maneiras de dançar, além de a música ser grande aliada na construção do processo de alfabetização.
Enfim, para uma educação de corpo inteiro, uma educação de sucesso, é preciso que a criança possa ser criança. E, para isso, é necessário que haja uma mudança de hábitos por parte dos professores e das instituições de ensino. Não se pode pensar em alfabetização sem que esta seja significativa para o aluno, sem que seja aliada ao uso do corpo e do movimento. E quando esta é feita desvinculada a essas coisas, é comum nos depararmos com grandes dificuldades que poderiam ter sido evitadas. O professor alfabetizador precisa ser criativo e incentivador, fazendo com que as crianças usem sua imaginação, criem novas brincadeiras, músicas e novas histórias, ampliando, assim, seu vocabulário. As crianças precisam se sentir livres. “Se prefixarmos tudo, dizendo sempre o que as crianças vão fazer, usando o planejamento como antecipação, já sabemos aonde as ações vão chegar” (GUIMARÃES, 2006, p. 69).
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Psicomotricidade e alfabetização
É através da psicomotricidade que a criança passa por experiências nas quais conhece e desenvolve sua individualidade, sua linguagem e socialização. Sendo assim, não há como pensarmos em aprendizagem se esta não estiver ligada ao movimento. O processo de alfabetização e a psicomotricidade auxiliam uma a outra. No caso da psicomotricidade, serve para auxiliar os primeiros aprendizados na alfabetização.
A alfabetização é um processo contínuo que acontece de maneira gradativa. Não adianta apenas codificar e decodificar. O aluno precisa saber interpretar, compreender e assimilar o conteúdo para que de fato ocorra o ensino e a aprendizagem da leitura e escrita. ”Aprender a ler e escrever é como aprender um jogo: é preciso conhecer as combinações, as regras, ter vontade e treinar bastante. [...] Portanto, podemos conhecer o mundo e suas coisas” (ALVES, 2012, p. 90).
Por isso, o professor alfabetizador precisa conhecer totalmente seu aluno, sem dissociar corpo e mente, e estar atento ao desempenho dos órgãos sensoriais no que se refere ao processo de ensinar e aprender na fase da alfabetização. É imprescindível que o professor compreenda como a criança chega à aprendizagem e ao domínio da leitura e da escrita.
Devemos ressaltar que existem duas concepções com visões diferentes do aluno. A visão tradicional, que entende o aluno como agente passivo, apenas recebendo os conhecimentos passados pelo professor, este como detentor de todo o saber. Essa tradição estava associada a uma concepção de alfabetização, segundo a qual a aprendizagem inicial da leitura e da escrita tinha como base, somente, fazer o aluno chegar ao reconhecimento das palavras. De uma maneira geral, tratava-se de uma visão da aprendizagem baseada na cópia, na repetição e no reforço. Outra visão é a sociointeracionista, contrária à tradicional, que entende o aluno como agente ativo, que constrói seu próprio conhecimento explorando o mundo que o cerca. A participação da psicomotricidade está vinculada ao processo de ensino-aprendizagem a partir da concepção de aluno nessa segunda visão, na qual a criança é livre para vivenciar situações que a estimule totalmente, em que possa pular, correr, entre outras coisas. A partir de cada movimento realizado pela criança, um aprendizado significativo é construído, dando suporte à construção do processo de alfabetização.
A alfabetização, nessa perspectiva, baseia-se em atividades significativas e desafiadoras que favoreçam a valorização do conhecimento, gosto e interesse das crianças. Para isso, é necessário que a sala de aula seja um espaço que estabeleça segurança e incentivo às crianças, onde haja diálogo, valorização da ideia e vontade de todos, propiciando o desenvolvimento de todos os envolvidos no processo.
Muitos professores confundem essa relação da psicomotricidade com a alfabetização, achando que, pedindo aos seus alunos que realizem atividades com pontilhados, cópia de curvas e retas, estão trabalhando a psicomotricidade. Isso não auxilia as crianças em seu aprendizado. Esse tipo de exercício é cansativo e trabalha apenas uma habilidade, quando a psicomotricidade propõe trabalhar o todo.
A criança na fase de alfabetização é toda movimento. O que para as crianças são simples brincadeiras, para a psicomotricidade são movimentos que servirão de base para a criança aprender a segurar o lápis, folhear o caderno, definir sua lateralidade, diferenciar as formas das letras, entre outras coisas.
Portanto, o conhecimento da criança do seu próprio corpo dará a ela condições de se situar no espaço, controlar o tempo e desenvolver habilidades e coordenação de gestos e movimentos que auxiliarão no processo de apropriação da leitura e escrita.
Considerações finais
A psicomotricidade ocupa papel fundamental no desenvolvimento do processo da alfabetização. As atividades psicomotoras permitem à criança conhecer o seu próprio corpo, criando condições de domínio do gesto da escrita.
É indispensável criar situações nas quais a criança possa aprender a controlar seu corpo, a ter flexibilidade e agilidade com seus membros superiores, antes de dominar seu lápis. Porém, essas habilidades perdem o sentido quando realizadas de maneira descontextualizada, como na execução de exercícios repetitivos. A psicomotricidade tem como papel fundamental desenvolver todas as potencialidades da criança, vinculada ao contexto da realidade do aluno.
Ressaltamos a complexidade da aquisição da leitura e escrita e a grande importância do professor em colaborar no processo de alfabetização. Destacamos a fase de alfabetização como um período que pode gerar grandes problemas para toda a vida escolar do aluno, quando não vivenciado de maneira e ambiente agradáveis. Compreendemos que a relação da psicomotricidade com a alfabetização contribui para o sucesso nas séries iniciais, percebendo a criança na sua totalidade, e não apenas de forma fragmentada e conteudista, desvinculando a aprendizagem do movimento já que há relação entre as atividades escolares e o desempenho neuromuscular — por isso, a psicomotricidade auxilia no processo ensino-aprendizagem.
Alfabetizar as crianças com a contribuição dos estudos da psicomotricidade significa criar situações para que as atividades estejam sempre vinculadas ao desenvolvimento infantil, contribuindo para o processo ensino-aprendizagem, diminuindo assim as dificuldades existentes nesse processo. Esses resultados não são imediatos, são resultados que aparecem a longo prazo. Por isso, os professores precisam sempre realizar atividades que utilizem estes dois aspectos: intelecto e corpo.
Apesar de todos esses indicadores para o êxito escolar, principalmente nas séries iniciais, muitos profissionais não identificam o movimento como peça fundamental para o aprendizado pleno dos alunos.
Referências
ALVES, Fátima. Psicomotricidade: corpo, ação e emoção. Rio de Janeiro: Wak, 2012.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília, MEC, 1998.
GUIMARÃES, Daniela de O. Educação infantil: espaços e experiências. Salto para o futuro, boletim 23. Novembro de 2006. Disponível em:
http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/175810cotidiano.pdf – Acessado em 23.05.2013.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE. Publicação Eletrônica. São Paulo, SP. Disponível em: http://www.psicomotricidade.com.br – Acessado em 01.06.2013.
TIRIBA, Léa. A pele é a raiz cobrindo o corpo inteiro. As linguagens do corpo. Salto para o futuro, boletim linguagens e sentidos – o corpo silenciado, 2001.
TISI, Laura. Educação física e a alfabetização. Rio de Janeiro: Sprint, 2004

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